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segunda-feira, outubro 02, 2017

Folha: Belém conserva cenário que encantou escritor Mário de Andrade há 90 anos

Theatro da Paz, de 1878, em Belém, no Pará; construção é inspirada no teatro Scala, de Milão.

Por Diógenes Brandão

Há poucos dias da maior manifestação de fé católica do Brasil, o Círio de Nazaré - o natal dos paraenses - assim como acontece com poetas, artistas e todos que conhecem a cidade que é considerada o Portal da Amazônia, o maior jornal do país se rende aos encantos de Belém e faz uma síntese da cidade das mangueiras. Sendo a única capital brasileira que tem o estado como sobrenome oficial e 401 anos de história, com encantos que não cabem em uma matéria, a Folha de S.Paulo soube pelo menos reconhecer nosso charme tal como Mário de Andrade. 

Que façam outras e venham sempre que desejarem! 

Por Fernando Granato, na Folha de São Paulo
Fotos de Luíza Zaidan/Folhapress.

A mesma foz do Amazonas que impressionou o escritor Mário de Andrade (1893-1945) em sua visita de reconhecimento do Brasil, em 1927, encanta o turista que chega a Belém de barco hoje.  

Barco na Baía de Guajará, em Belém, no Pará.

"A foz do Amazonas é uma dessas grandezas tão grandiosas que ultrapassam as percepções fisiológicas do homem", disse o modernista, em seu "O Turista Aprendiz", livro que resultou daquela viagem de 90 anos atrás.

O escritor chegou a Belém "antes da chuva", como observou em seu diário, "e o calor era tanto que vinha dos mercados um cheiro de carne seca". Instalou-se no Grande Hotel, hoje demolido, e naquela primeira noite foi assistir ao filme "Não Percas Tempo", num cinema localizado na mesma rua. "Um filme horrível", como registrou.

Cais em frente ao mercado do Ver-o-Peso, em Belém, no Pará.

O curioso é que o cinema que recebeu o escritor, o Olympia, permanece em funcionamento e é o mais antigo do Brasil a ainda projetar filmes. Inaugurado em 1912, em julho deste ano exibiu o documentário "Do Outro Lado do Atlântico". Segundo o projecionista Gideão Araújo, hoje a casa não recebe mais que cem espectadores por sessão, e a sua maior bilheteria foi nos anos 1990 com "Titanic".  

Cine Olympia, o mais antigo em funcionamento do Brasil, onde Mário de Andrade assistiu "Não percas tempo", em seu primeiro dia de visita a Belém, em 1927.

"Esse filme foi o responsável por manter o cinema aberto no momento de maior crise", lembrou Araújo. Sobre a passagem de Mário de Andrade pelo cinema, o funcionário não tinha conhecimento.  Já no mercado Ver-o-Peso, que deslumbrou o escritor, as lembranças anotadas pelo modernista podem ser constatadas até hoje. Construído para receber as mercadorias que os ribeirinhos traziam para abastecer a capital, o entreposto é o ponto mais efervescente da cidade.

Pescador descarrega sua carga de peixes em frente ao Mercado do Ver-o-Peso, em Belém, no Pará. 

Na parte coberta, montada em ferro pré-moldado trazido da Europa, funciona o mercado de peixes. Ali, nas primeiras horas do dia, homens trazem uma infinidade de douradas, filhotes, tambaquis e tucunarés. Xisto Brito, 78 anos, 63 deles vividos dentro do Ver-o-Peso, conta que antes havia ainda mais fartura de peixe. "Hoje recebo cerca de 300 quilos por dia e vendo rapidamente tudo", diz.

Xisto Brito, 78, que comercializa peixes no mercado Ver-o-Paso há 63 anos. Segundo ele, antigamente havia ainda mais fartura de peixe.

Ao lado, ficam os balcões dedicados às frutas. Açaí, cajá, cupuaçu e toda uma gama de espécies que deixaram o escritor perplexo. "Provamos tanta coisa, que embora fosse apenas provar, ficamos empanturrados", anotou.  ERVAS MILAGROSAS  Um pouco mais adiante, entretanto, está a parte mais curiosa do mercado: a que comercializa ervas, folhas e tudo que se pode imaginar de plantas medicinais amazônicas. A pessoa chega e diz a doença. Diabetes, hipertensão, gastrite. E logo surge uma espécie milagrosa. Algumas delas até para dores abstratas, como as do amor.

Quem explica é Sandra Maria Melo, 59, a "Tieta", filha de índia karipuna que trabalha ali há mais de 40 anos. "Temos a chora-nos-meus -pés, a agarradinho, a pega-e-não-me-larga, e a corre-atrás. Todas elas ervas próprias para o amor", diz. 

Nas trilhas de Mário de Andrade por Belém não pode faltar uma visita ao Theatro da Paz, de 1878, inspirado no Scala, de Milão. Com a plateia dividida de acordo com as classes sociais, o térreo é dedicado aos abastados, e os andares superiores deixados para a plebe. Essa divisão ainda é mantida, com preços de ingresso que variam de acordo com a localização, e o camarote destinado ao imperador hoje é de uso exclusivo do governador do Estado.

E, por último, não se pode deixar de conhecer o Museu Goeldi, que guarda o maior acervo do mundo em espécies vegetais e animais da Amazônia, além de livros. "Biblioteca admiravelmente bem conservada pelo dr. Rodolfo de Siqueira Rodrigues, um desses heróis que não se sabe", observou o modernista.

Os encantos da cidade permanecem e dão ao viajante de hoje a mesma sensação que levou o escritor a dedicar uma cantiga a Belém, intitulada "Moda do Alegre Porto". Numa das estrofes, ele diz: "Que porto alegre Belém do Pará! Vamos no mercado, tem mungunzá! Vamos na baía, tem barco veleiro! Vamos nas estradas que têm mangueiras! Vamos no terraço beber guaraná! Que alegre porto, Belém do Pará!" 

REINO DO 'BREGA'  

Belém tem em seus arredores uma infinidade de praias de rio, algumas pouco conhecidas dos turistas de fora. Uma delas, Chapéu Virado, na Ilha de Mosqueiro, já foi visitada pelo escritor Mário de Andrade em 1927.

Naquela viagem de descobrimento, ele anotou: "Banho de água doce em quase pleno mar. Enxames de ilhas, cardumes de ilhotas que vão e vêm, desaparecem."  

Nos dias de hoje, o turista encontra em Chapéu Virado resquícios do tempo em que o balneário era frequentado por barões da borracha, que lá construíram, no século 19, chalés de veraneio. Muitas dessas casas podem ser vistas na rua principal.  

Um dos chalés de veraneio construídos no século 19 por barões da borracha, na avenida Beira Mar, em Chapéu Virado, praia de rio nos arredores de Belém, no Pará.

Ainda está por lá também a pequena capela do Sagrado Coração de Jesus, construída em 1909 por um devoto, em pagamento de promessa. Mário de Andrade a fotografou e colocou na legenda: "Igrejó de Chapéu Virado". A partir de 1950, o santuário tornou-se local de saída do Círio de Nossa Senhora do Ó.

Capela do Sagrado Coração de Jesus, que foi construída em 1909 em Chapéu Virado, praia de rio nos arredores de Belém, no Pará.

Já no fim da praia, está o Hotel do Farol, transformado em hospedaria em 1930 pelo empresário Zacharias Mártyres, que lá tinha uma casa de veraneio. A construção lembra a de um navio, com cantos arredondados para quebrar a força do vento e propiciar a vista para a baía.  

A bela vista para a praia, na expectativa de quem está no Hotel Farol. Foto adicionada por este blog.
A faixada do Hotel Farol. Foto adicionada por este blog.
Na orla, além dos casarões, pode ser visto hoje um desajeitado prédio de apartamentos, que destoa dos encantos do balneário. Encantos registrados na caderneta de Mário de Andrade, que apreciou tudo, especialmente a vegetação e o banho de rio.  Na atualidade, reina por ali o "brega", ritmo tocado nas barraquinhas que ficam lotadas nos fins de semana com o povo que vem de Belém. 

O "desajeitado prédio de apartamentos", citado na matéria. Foto adicionada por este blog.
Maria Mourão, 89 anos, e seu filho Benedito Mourão, 65. Maria é a primeira moradora do Caripi, praia de rio nos arredores de Belém, no Pará; ela conta que a localidade ainda não existia quando Mario de Andrade visitou a região.

Barco que faz o papel de perua escolar em Barcarena, cidade a 20 quilômetros de Belém, no Pará.







    

domingo, maio 22, 2011

O Tacacá





O TACACÁ¹ 


Vera Mogilka²

"O tacacá, toma-se? bebe-se? sorve-se? saboreia-se? Não, O tacacá  deseja-se, de repente, como se deseja uma mulher, como se deseja retornar ao amor da adolescência.

O tacacá possui o toque agudo da  saudade. A memória de seu sabor salgado e ardente assalta-nos sem  aviso, em pleno dia, em determinadas horas de distração. Naquele  momento involuntário de repouso quando, por fim ao cair da tarde sobre  o rio, respiramos. Certo e pequeno instante, dezenas de sugestões  cruzam a mente. Todos os atos gratuitos e cheios de graça da vida: uma  criança correndo na grama, braços em repouso e um regaço, mãe  amamentando o filho, avião acendendo e apagando as luzes na bruma da  noite, navio singrando a baía, luar úmido sobre igarapés - vontade de  tomar tacacá. Desejo de tacacá. Porque, para tomá-lo, é preciso, antes  de tudo, um ritual.

 É preciso que seja ao anoitecer. Ainda não de todo noite completa;  ainda não dia findo. Àquela hora semi-crepuscular, indecisa e feminina  quando, por fim, o céu se envolve de um azul-cinzento intenso ou  aquela chuva antes da saída da lua. É preciso que estejamos cansados, tão fatigados que nada nos afigure mais necessá­rio, naquele momento,  do que tomar um tacacá. Nem o bate-papo informal com o amigo. Nem o  café no Central. Nem o olhar à mulher que passa. Apenas, a pro­cura, a  única procura por um tacacá, com pouca pimenta ou muita e bem quente.

 Depois, é preciso que haja um banco. Tacacá toma-se sentado para que o  corpo repouse e possa se entregar completamente ao prazer de saboreá-lo. Porque o tacacá é extremamente absorvente. Quando bem feito, o que ocorre pouco. Pois fazê-lo e tomá-lo é uma arte. É preciso, também, que a noite desponte ao chegarmos junto ao carrinho  de tacacá. E comece a chover, levemente. Faça algo de frio, algo de úmido. O que não é difícil em Belém.

 Depois, como estamos cansados e  queremos esquecer, esperamos. Uma paciência longa e calma, até que a  dona do tacacá termine por prepará-lo. De preferência que seja em  Nazaré ou olhando a Igreja da Trindade. É preciso que o tucupi seja  leve, amarelo-canário e novo. Que a goma bóie no líquido, espalhada  por acaso e se mostre apenas por alguns instantes; que não haja muita folha; que os três ou quatro camarões sejam médios, nem grandes demais ou minúsculo e somente uma parte deles apareça, a ligeira carne rósea a deixar-se entrever, adivinhar-se na cuia olorosa. Depois, é preciso que haja sal e pimenta de cheiro, mas não em demasia; o suficiente  para nos queimar a alma nos primeiros goles e reanimar o corpo; então  renascemos para a noite e a alegria novamente nos habita. O suficiente  apenas para desvanecer seu fervor após esses primeiros goles e tornar-se depois, uma presença quente, já quase uma memória, na ponta  da língua.

 É preciso saber tomar o tacacá. Aos primeiros sorvos integralmente seu  calor, sua salinidade, seu gosto de mar quente, de arbusto e molusco que os lábios experimentam fugidiamente. É preciso que o jambu e os  camarões pousem lentamente no fundo da cuia e venham à boca, por si mesmos, sem o auxílio dos dedos. É necessário que não sejamos interrompidos. Apenas um aceno de cabeça aos conhecidos que passam. Um filtro mágico que se bebe em silêncio e solidão. Somente a comunicação imperceptível com a tacacazeira: feiticeira moderna numa terra onde as lendas ainda sobrevivem em um mundo que se materializa  inexoravelmente.

 Chegados ao fim do tacacá, é preciso que o mesmo ainda se conserve morno, assim como o fim de um amor. Jamais frio. Não existe nada pior do que um tacacá frio. É como champanhe sem gelo. Neste momento tomaremos contacto real com as grandes porções maternais de goma penetradas pelo tucupi e pela amargura das folhas. Há sempre um gato gordíssimo perto do carro de uma tacacazeira. Ele comerá,
 displicentemente, as cascas de camarão que atirarmos ao chão. A cuia  está vazia.

 Agora, o mais importante: jamais repetir o tacacá, na mesma noite. A segunda cuia nunca devolverá o sabor da primeira. O primeiro tacacá daquele dia é único, autêntico, original, insubstituível como o gosto  do primeiro beijo. Como a primeira entrega de amor. Porque os tecidos de nosso cansaço e de nossos desejos são satis­feitos. Porque foi necessário todo um dia infrutífero e todo um sol de toda uma chuva  para alcançá-la. Todo o equívoco das relações humanas, toda a falta de  solidariedade, de cortesia, de amizade e de comunicação com os outros.

 A decep­ção será fatal se arriscarmos um segundo, fiéis à gula. É  preciso permitir-se um resto de fome, um resto de desejo para o dia seguinte, um resto de tristeza intransferível. Quando a baía abrir suas margens de musgo para recolher as asas do dia; quando a lua  surgir em seu halo de chuva; quando chegarmos ao fim de nossas tarefas  cotidianas, então, novamente, sentiremos na ponta da língua a subtaneidade acre do tucupi. Paraenses, não vos espanteis com essa narrativa. O que, para vós é  banal e acessí­vel desde a infância, para um sulista é um mistério, uma surpresa e um inédito prazer. Muito comum é o visitante de outro Estado que vem a Belém pela primeira vez e olha, desconfiado, aquele grupo de pessoas ao redor de um carro de tacacá. Os movimentos das mãos da tacacazeira lavando as cuias e servindo-as, Os utensílios tos­cos, rudimentares. O turista, cheio de suspeitas e de teorias  anticépticas, recusa-se a prová-la com argumentos de falta de higiene.  Procura máquinas a vapor que sequem automaticamente as cuias. Busca  torneiras reluzentes de onde jorre um tucupi sintético e insosso; e só  encontra aquela magia indígena, obscura, incons­ciente perante a qual recua porque seu coração não possui mais raízes fixas no mistério da  natureza. Porque não é mais um homem natural.

 Paraenses, vós desconheceis vossas próprias riquezas. Dia chegará a  que o gi­gante levantará a grande cabeça de florestas de seu berço esplêndido e o Brasil será redescoberto (não mais pelos portugueses).  O tacacá deixará de ser um usufruto particular e banal. E, em clima frio e chuvoso como o de São Paulo será servido à noite, entre centenas de sessões de cinemas super luxuosos.   Milhares de tacacás industrializados, produzidos por intrincados mecanismos de alumínio e aço. E o mistério amazônico perder-se-á para sempre. Será recolhido ao  coração de alguma floresta ainda virgem, porém, impenetrável e densa.  Lá onde os homens não possam mais capturá-lo e bebê-lo,  distraidamente, sem amor e sem ritos. Lá onde, enfim, seu selvagem sabor repouse intacto e inacessível no bojo do tempo.

 ¹ - Crônica publicada dia 16 de fevereiro de 1964, no jornal "A  Província do Pará" , editado diariamente em Belém do Pará.

 ² - VERA MOGILKA, turista gaúcha, retratou de modo interessante o  Tacacá em diversos dos seus aspectos.

Esta crônica foi transcrita no livro “A mandioca na Amazônia”, de  autoria do engenheiro agrônomo Milton Albuquerque, pesquisador do Instituto Agronômico do Norte, hoje Embrapa, em Belém do Pará, em  1966.


Enviado ao blog pelo grande camarada José Varella. 

Conheça-o:

http://resistenciamarajoara.blogspot.com/

quarta-feira, outubro 06, 2010

O Círio e a Síndrome do Paraensismo Agudo

Ctrl-C + Ctrl-V na cara dura do blog Bêbado Gonzo

Chegamos à época mais divertida de se morar em Belém. Ao longo do ano, a capital do Pará é um inferno: trânsito caótico, gente mal educada, lixo nas ruas, poluição sonora, absoluta falta de bom senso e o risco iminente de encontrar semi-conhecidos a toda hora, já que o núcleo principal da nossa cidade é um ovo. Um ovo de curió, para ser mais específico. Não pense que essas coisas mudam neste período. Nada muda. E ainda há dois agravantes: o tráfego piora e o aumentam as chances de esbarrar naquele colega de ensino médio que você não lembra o nome de jeito nenhum, mas se sente obrigado a cumprimentá-lo. No entanto, algo de sobrenatural deixa a Cidade das Mangueiras muito mais interessante, suplantando todos os percalços da nossa rotina de cão.

Foto: Bruno Miranda.
É, estamos no Círio. Quem não é paraense ou praticante do turismo religioso de raiz sabe pouco sobre a festa. Se for procurar no dicionário, vai aparecer que círio é uma velona, uma vela grande, ou ainda romaria, procissão, o que tem relação com o Círio com c maiúsculo. Mas, a explicação carece de mais detalhamento. Caso um forasteiro tente relatar o evento sem nenhuma contextualização, vai contar mais ou menos assim: era um mundaréu de gente espremida pelas ruas, impedindo que outra galera – essa exausta e toda suada - puxasse com uma corda a imagem de Nossa Senhora. E, enquanto uns penavam puxando, outros vestidos de branco andavam num cordão de isolamento numa boa só se abanando e protegidos por seguranças até chegar de uma igreja à outra. Mas, ainda não é isso. O Círio, de fato, é uma manifestação religiosa que iniciou católica, mas hoje reúne credos de todos os tipos. Dizem as más e boas línguas que até ateus participam para não se sentirem excluídos e depois da procissão filarem a bóia, cujo aspecto é realmente estranho, porém o sabor inigualável. Vide o caso maniçoba. É preciso andar por Belém neste tempo de devoção e sacrilégios para compreender melhor, para se inteirar e perceber que, embora haja um clima Padre Fábio de Melo way of life de ser, também há uma necessidade de extravasar a alegria e o desejo enorme de revolucionar, suprimidos ou exibidos esporadicamente ao longo do ano. No Círio, paraenses da gema e adotivos voltam à condição de sonhadores sensuais, como diz professor e paraense Fábio Castro. Paralela as tarefas cristãs e marianas, rezas, sacrifício físicos, carolices extremas, há uma força brutal que tem muito mais a ver com o carnaval do que genuinamente com os ritos da Igreja Católica. O Círio é também tempo de reencontrar velhos amores, de embates com amantes extraviados, de se apaixonar do nada no meio da rua, de passar uma semana insone pulando de festa em festa, de engordar dez quilos de tanto comer, de resolver ódios pendentes e promessas de vingança, de engravidar sem planejamento e precocemente, de morrer e matar, de deixa valer impulsos e instintos. As estatísticas apontam: gasta-se mais, transa-se mais, morre-se mais, comete-se mais crimes. O Círio transpira excessos de todos os gêneros, o que bispos, padres, beatas e todos os moralistas odeiam incluir como parte da efeméride, mas tem que engolir em seco sua evidência ou mesmo praticá-los às escondidas.
Sonhadores sensuais, mas não paraenses.
No Círio, repetimos a experiência de fartura de tantos anos atrás, quando a borracha nos servia mais para fortuna do que para evitar filhos. As mesas são tão fartas que é possível comer as sobras até chegar novembro, apesar de o auge da festa ser o segundo domingo de outubro. Até nos casebres mais pobres, milagrosamente, a comida abunda. Nos casarios e apartamentos mais abastados, os banquetes não cabem nas cozinhas e nas salas de jantar e o ar se impregna do cheiro do cianureto cozido da maniva e da acidez amarela do tucupi. Todos amam a cidade. Amam tanto que seria muito mais justo com Belém eleger prefeito no dia do Círio. Quiçá a população escolheria um alcaide verdadeiramente engajado com os anseios municipais – ou não. De tanto amor momentâneo repetiríamos a mesma insanidade quadrienal de sempre. O afeto é tanto que mesmo os que mais depredam, escarnecem e cospem, urinam, vomitam e cagam na capital, nessa época, escrevem versos, cantam, suspiram, choram e sangram pela velha morena tão sofrida nos demais onze meses. Um encantamento se sustenta no ar junto com uma flagrância secreta de flores e bons pensamentos. Aqueles que passam o réveillon no Rio de Janeiro, o carnaval na Bahia, a Semana Santa em Campos do Jordão, as férias de julho em Miami e juram diante da cruz que São Paulo é o melhor lugar para viver, milagrosamente demonstram uma adoração nunca vista na história desta Belém. Palavras cabalísticas como carimbó, Ver-o-peso, Nazaré, rios, manga, tacacá, açaí e tudo relacionado à cidade ganham um peso a mais numa dieta hipercalórica de afeição e valorização.
Foto: Breno Peck
Independente do quanto se tem no bolso ou das origens familiares, pobres, ricos e remediados, todos nós padecemos da Síndrome do Paraensismo Momentâneo Agudo, a doce patologia invasiva e contagiosa, causadora de superlativos infinitos sobre o que em setembro era mera paisagem sem importância ou hábito corriqueiro e, para alguns, até considerado coisa de gentinha. Chegamos ao Círio. Tempo de amar profundamente o que, em regra, dispensamos um amorzinho raso, sem sal. Belém, essa mulher desejosa, voluntariosa e massacrada pelo tempo, deve esperar ansiosa essa época. Lábio inferior mordido, mãos entre as coxas apertando o vestido, pés inquietos, olhos no rio, a morena olha o relógio dos meses aguardando chegar a hora de outubro, quando nós, os maridos relapsos, chegamos perfumados, de roupa e saptos novos, e doamos toda fúria do sentimento que temos por ela, mas que não demonstramos durante a nossa longa semana de trabalho, de longos outros onze meses. Um feliz Círio a todos nós.

Crise: Edmilson Rodrigues perde seu braço esquerdo no PSOL

Luiz Araújo deixou o PT para fundar o PSOL, onde viveu até então organizando a corrente interna "Primavera Socialista" e supostame...